quinta-feira, 22 de março de 2007

TPM

Na cozinha, sozinha, ela se esmera e se apressa em preparar o almoço. Compromisso diário chova ou faça sol.
Bom, ela afogou o arroz, o feijão e fritou os bifes. Correu na esquina, comprou coisas para a salada. Fez um suco. E pronto. Missão cumprida... E nesse momento ela se satisfez, se sentiu viva.
Sem apetite e talvez se não fosse esse compromisso faria outras coisas... Que nem ela mesma sabia quais seriam.
No decorrer da sua vida participou na realização de muitos sonhos, mas não os seus. Os seus sonhos eram os sonhos dos outros e já nem se lembrava dos sonhos que tivera um dia, eles foram esmagados.
E ultimamente ela começava a questionar essa sua posição diante da vida. Mas consigo mesma, por que ninguém iria perder tempo em ouvir suas lamúrias. Então ela mastigava suas questões entre um afazer e outro.
Bom, o almoço estava pronto e depois de certo tempo ficou claro que ninguém apareceria. Encontraram outros caminhos e já nem se lembram que em sua casa, na cozinha, borbulhavam sabores... Que delícia...
A sua cozinha se tornou um aparato do dia a dia, que estava sempre ali, indiferente do quorum. E como ela estava intimamente ligada aquela situação, ela se sentiu absoleta. Sentiu que já nem poderia ajudar nos sonhos dos outros, que conseguiam autonomia a cada dia e já nem precisavam de seus cuidados. Distanciavam-se de sua capacidade de ajuda.
Ficou triste, tentou se consolar, tentou ignorar, era mestre nisso. Tentou sonhar. Tentou sentir o que sentia, o que queria, o que fazer? Então, chegou a uma conclusão: “Havia caído em desuso”.
E lá de dentro um gritinho cada vez mais alto lhe chamava para viver para si. Sim... Quem sou eu?

domingo, 18 de março de 2007

ALMAS SECAS

De férias em Brodowski fomos, o Robson e eu, a uma Lan House para que ele, já inserido nas vias "internéticas", colocasse seus e-mails, orkut, blogs, de acordo com a sua inspiração do dia, que não tinha nada a dever aos céus. Surgindo coisas maravilhosas e também outras obrigações nem tanto urgentes, mas sementes necessárias de uma linguagem em nascimento.
Quando chegavamos a Lan fiquei absorta observando a beleza, o mistério, e ao mesmo tempo o descaso e o abandono da casa onde funcionava a Lan.
A casa me intrigou bastante, me tocou profundamente vê-la consumidade pela modernidade, "pela força da grana que ergue e destrói coisas belas." Me indiguinei mais ainda.
No seu jardim uma fonte, única, que deve ter sido em outros tempos o ponto máximo da arquitetura local e que agora passa desapercebida. Um pequeno altar incrustado na parede, agora orfão de santo, também muito significatio. A varanda apoiada em finos canos, que sustentam a laje, com a garagem ao lado, que parece nunca ter sido usada. A casa toda de laje, coisa rara em tempos antigos. Paredes com tijolos deitados, bem largas, sendo que cada janela dá direito a um bom encosto. Janelas com venezianas iluminando toda a casa. Obs.: quando se entra na casa, sente-se a agressão. As paredes foram pintadas de preto para caracterizar uma coisa punk, metálica, submundo com computadores alinhados rumo ao futuro.
Eu uma analfabeta digital, diante de tantos jovens, com tantas direções na tela, às vezes até interagindo entre eles. Indiferentes ao meio externo. Pouca luz, ventiladores de parede e teto a todo vapor, janelas lacradas com compensados, não deixando entrar luz, que atrapalharia a visão do monitor.
Na entrada uma sala enorme com dois ambientes, com uma singela lareira e já sem seus lustres, substituídos por luz neon, paredes negras grafitadas. Adentrando mais um pouco, chega-se a outra sala, também negra, janela e portas lacradas, mas com lustre ainda no lugara, empoeirado, mas imponente.
Um quarto ao lado com enorme guarda-roupa lacrado com a rede elétrica provisória, janela sem visão e outros tantos cibernéticos. Me sentindo exclusa comecei a tentar enlaçar o presente com o passado. Mil perguntas me vieram a mente. Como se viveu naquela casa? O que poderia ter acontecido para que aquele primor arquitetônico estivesse ali sendo tão escrachado? Uma casa orfã de passado? Será que não se criou ali nenhum tipo de consciência?
E não podia fazer nada, a não ser bancar a arqueóloga, e tentar tirar de sua composição o seu passado. Noutro dia falando com o Emílio, morador antigo do lugar, que me disse ter sido aquela casa a mais bonita da cidade. Construída por uma mulher, apenas por ela, que se casou depois de um namoro de longos trinta anos, não deixando filhos. E já os dois falecidos. Essa questão me arremeteu a uma questão que há muito me ronda. Não poder colocar na bagagem a casa de minha infância.
Será que somente os filhos tem prazer em preservar a memória dos seus pais, de sua casa? Moraria ali alguém que se deva apagar urgente da memória?
Quem se tornou o infeliz proprietário?